Na noite desta segunda-feira (4), completam-se 50 anos do assassinato de Carlos Marighella. Poeta, militante e guerrilheiro, o baiano caiu em uma emboscada comandada pelo delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), Sérgio Paranhos Fleury, na Alameda Casa Branca, na altura do número 800, em São Paulo (SP).
ODouble lançou uma reportagem especial em memória de Marighella. Entre os entrevistados, colaborou com este trabalho Mário Magalhães, jornalista e autor de uma biografia de mais de oitocentas páginas sobre o personagem do dia.
Confira a entrevista na íntegra:
Double: Como se deu o processo inicial de produção da biografia de Carlos Marighella? Quando você iniciou os estudos sobre a vida dele?
Mário Magalhães: Eu era, até 2003, repórter especial da Folha de S. Paulo. Queria mais tempo e espaço para contar uma história em formato de livro, portanto deixei o jornal. Queria que fosse uma história de gente, uma biografia.
Carlos Marighella, eu supunha, tinha uma grande história a ser contada. Alguns bravos pioneiros, como Emiliano José e Frei Betto, já haviam escrito sobre a vida dele. Resolvi acrescentar o meu tijolo à parede da memória. A biografia consumiu nove anos de trabalho, dos quais cinco anos e nove meses em regime de dedicação exclusiva.
Entrevistei 256 pessoas, de correligionários a antagonistas de Marighella; de contemporâneos de sua juventude até os jovens ao lado de quem ele batalhou na luta armada; do delegado que mais o perseguiu no Rio aos policiais que o mataram em São Paulo. Tive acesso a documentos de 32 arquivos públicos e privados de cinco países. O fim do volume reúne 2.580 notas sobre fontes. A bibliografia consultada foi de 600 títulos.
Lançada em outubro de 2012, a biografia está na oitava reimpressão. Recebeu seis prêmios. Foi uma fascinante aventura jornalística e literária que, cá entre nós, só me deu prazer. O desafio maior foi reconstituir a trajetória de um personagem que certa historiografia tentou eliminar da memória nacional e que, ao mesmo tempo, tentava apagar suas pegadas, para não ser preso, torturado, baleado, morto.
Qual a melhor forma de resumir quem foi Marighella, um homem tão complexo?
Marighella se definia como “um mulato baiano”. É possível que hoje ele substituísse a palavra “mulato”. Para mim, Carlos Marighella foi essencialmente um homem de ação. Ele escreveu em 1965 uma de suas frases mais marcantes: “O conformismo é a morte”.
Como biógrafo, eu não julgo o protagonista. Cabe aos leitores formarem seu próprio juízo, a partir de informações escrupulosamente apuradas.
Como era a relação dele com a cultura brasileira? Ele queria uma revolução com futebol e carnaval?
Marighella não foi um curioso que, de fora, penetrou, ainda que de modo legítimo, na vida cultural mais popular dos brasileiros. Ele a viveu desde criança. Brincava o Carnaval (no Partido Comunista Brasileiro, formou um bloco em meados da década de 1940). Divertia-se no São João. Jogava futebol (seu apelido nas peladas do presídio político da Ilha Grande era “Bicão Siderúrgico”). Era torcedor (Vitória, na Bahia; Flamengo, no Rio; Corinthians, em São Paulo). Lia poesia e, desde garoto, poetava.
Aos 19 anos, escreveu um poema que terminava assim: “Andei como o diabo! Enfim... eis-me de novo aqui:/ quero ver se descubro se já me descobri”. Conviveu -- e foi amigo -- com grandes nomes da literatura, do teatro, da música, das artes plásticas, da teledramaturgia, do futebol. Às vésperas de seu assassinato, em seus esconderijos, divertia-se compondo paródias de letras do Roberto Carlos, assim como na juventude adaptava os versos de Castro Alves.
Marighella não correspondia ao estereótipo do revolucionário circunspecto e avesso ao que não for claramente militância política.
Quais foram as formas de cultura e agitação e propaganda produzidas por ele para dialogar com o povo sobre a revolução?
Um dos maiores talentos de Marighella era a atividade que a tradição comunista denomina agitprop, ou agitação e propaganda. Em sua primeira prisão, durante dois dias em agosto de 1932, ele compôs um poema contra o interventor (governador imposto pelo poder central) da Bahia, Juracy Magalhães. Era uma paródia do poema “Vozes d’África”, de Castro Alves. Juracy, Marighella não esqueceria, prometeu triturar os ossos do audacioso e criativo estudante de engenharia civil.
Eu conto no livro como Marighella bolou uma engenhoca para distribuir panfletos, um instrumento que a imprensa chamou de “foguetão extremista”. Na Constituinte e na Câmara, o deputado Marighella surpreendia levando para as sessões pães de baixa qualidade, exibindo-os ao plenário, enquanto discursava denunciando a baixa qualidade de produtos vendidos por algumas padarias. Quando tentaram proibir que os anais da Casa registrassem a palavra “reacionário”, pronunciada por ele, causou espanto ao aparecer carregando muitos dicionários para mostrar como o adjetivo não ofendia o idioma.
Na ditadura, com a censura asfixiando a livre expressão, Marighella e seus companheiros empreenderam ações armadas como a tomada dos transmissores da Rádio Nacional (de São Paulo, emissora do Grupo Globo) para difundir um manifesto -- ele não participou da invasão da estação retransmissora.
Marighella era obcecado com eficiência da mensagem política. Admirava o poder de comunicação do Chacrinha, tanto que um dos capítulos do meu livro se intitula “Quem não se comunica se trumbica”, que era um bordão do Velho Guerreiro.
O que mais te chama atenção em Marighella?
Ele teve uma vida trepidante; não há, ao meu olhar, uma característica que se destaque mais. Como eu costumo repetir, quase como um mantra: é legítimo amar ou odiar Carlos Marighella, mas é impossível permanecer indiferente à sua trajetória. Ele viveu intensamente a política, a cultura, o amor, as artes, a amizade. A contracapa do livro destaca uma frase dita em 9 de maio de 1964 pelo seu maior perseguidor no Rio, o delegado Cecil Borer, o capo da polícia política: “Cuidado, que o Marighella é valente”. Era mesmo.
Por que o filme "Marighella", dirigido por Wagner Moura e baseado na biografia que você escreveu, ainda não teve lançamento no Brasil?
Careço de informações sobre os procedimentos burocráticos de agência governamental na era Bolsonaro. Mas é evidente que a demora para a estreia do filme dirigido pelo Wagner está relacionada com o obscurantismo que avança no Brasil. É tempo do que o governo chama de “filtro” na cultura _para quem rejeita eufemismos, trata-se de “censura”, e não “filtro”. Marighella não é estudado ou mesmo citado nas escolas (não sou a favor de que o incensem, nem de que o demonizem; mas sim de que ensinem sua história e o lugar que ele ocupou no Brasil e no mundo). Muitos espaços de história, cultura e jornalismo continuam condenando-o ao silêncio, proibindo que se fale sobre ele.
Qual o legado para o povo brasileiro, 50 anos após o assassinato?
Depende para quem. Para uns, ele é herói. Para outros, vilão. A imensa maioria dos brasileiros não conhece a história de Marighella. Conhecer a própria história é um direito humano, direito dos povos. Para alguns que o conhecem, ele é exemplo. Para outros, incômodo. Tenho convicção de que Marighella desperta hoje mais amor e ódio do que no tempo, de 1967 a 1969, em que ele ganhou projeção mundial. Isso tem a ver com o Brasil de hoje, com partidários da barbárie no poder. Para julgar Marighella, é preciso conhecer sua história autêntica.
Ninguém é obrigado a concordar com suas ideias e com suas ações, mas é uma infâmia espalharem, para ficar em um exemplo, que Marighella foi torturador ou defensor da tortura. Nem as duas ditaduras que ele enfrentou tiveram o descaramento de difundir tal mentira. Ou seja, quem chama Marighella de torturador está à direita do Estado Novo (1937-1945) e da ditadura parida em 1964. A verdade é que ele foi torturado pela polícia política, por 21 dias consecutivos, em 1936, época do governo já autoritário e repressivo de Getulio Vargas.
Para uns, Marighella é inspiração. Para outros, um maldito. Sem conhecer de fato a história dele, qualquer juízo será leviano.
Edição: Daniel Giovanaz
